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‘Médicos de livros’: alunos restauram 15 obras raras da Biblioteca Estadual do Ceará

Curso ofertado pela Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho aborda conservação e restauração de livros raros

por gazetalitoranea.com.br
6 visualizações Gabriela Custódio/DN
alunos restauram 15 obras raras da Biblioteca Estadual do Ceará

Usando jaleco, luvas, máscaras e óculos de proteção, alunos da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho (EAOTPS) manuseiam com cuidado páginas que datam do final do século XIX até meados do século XX. São livros raros, alguns exemplares únicos, que foram analisados pelos participantes do “Curso de Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais — segmento papel”, receberam um diagnóstico e estão sendo restaurados.

Ao todo, o curso conta com 15 alunos, cada um responsável pelo restauro de um livro do setor de obras raras da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece). Inicialmente, eles assistiram a 20 horas de aulas teóricas, que tratam sobre temas como patrimônio, história do papel e como fazer o diagnóstico. Em seguida, foram para o Laboratório de Conservação e Restauro de Papéis da Bece, onde o conhecimento adquirido é aplicado. O curso teve início no início de junho e segue até 23 de julho.

“Os livros foram divididos, um por aluno, e eles estão fazendo os procedimentos necessários. Aqui na conservação e restauração nós brincamos que somos os médicos dos livros. Nós verificamos o que ele precisa e fazemos um diagnóstico”, explica o pedagogo e restaurador Luiz Evi Braga, professor da turma e ele mesmo um ex-aluno da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho.

A obra pode chegar aos restauradores com diversos problemas, como acidez, oxidação e encadernação fragilizada, explica o professor. Com o diagnóstico feito, são definidas quais técnicas serão utilizadas no tratamento e todas essas informações são reunidas em uma ficha que acompanha o livro ao longo do processo.

Etapas de restauro

O professor Luiz Evi Braga exemplifica como ocorre essa restauração. O primeiro passo é a higienização mecânica, em que se utiliza uma trincha — ferramenta com cerdas — para remover as sujidades. Depois, deve-se remover a oxidação, caso haja grampos, e desmontar o livro, caso a encadernação esteja fragilizada.

Há também etapas que envolvem processos químicos. Quando o papel está ácido — o que é identificado por meio de um teste de ph —, ele fica quebradiço e rasga com facilidade. Em seguida, é feito um teste de solubilidade, para identificar como o papel vai reagir à solução alcalina, que resolve a acidez.

“(O teste de solubilidade identifica) se o livro vai borrar as letras, se vai soltar algum tipo de pigmentação ação ou não, para depois ser feito banho alcalino”, diz Braga. Com esse processo, as folhas voltam a ficar maleáveis.

Essas etapas já foram realizadas pelos alunos, desde o início das atividades práticas do curso. “Depois da higienização mecânica, eles também fizeram a higienização com pó de borracha, que também ajuda a tirar sujidades nas capas dos livros, e alguns fizeram com bicarbonato de sódio, para ajudar na questão do mofo e do bolor”, complementa Braga.

Após o banho alcalino, o papel vai para uma secadora. Os outros procedimentos referem-se ao reforço das bordas das páginas com papel japonês e à realização de obturações e enxertos caso existam orifícios nas páginas. Por fim, a obra passa por reencadernação, reforço de lombada e fixação da capa.

Para a seleção dos livros que vão passar por esse processo, Enide Vidal, diretora da Bece, explica que é feito um levantamento considerando os mais importantes, a data da obra e a condição de uso. “A biblioteca, além de ser um local de formação, de fruição, é também de preservação da memória do nosso Estado”, afirma.

Conheça as obras que estão sendo restauradas pelos alunos:

  1. Impressões do Nordeste brasileiro, de Paulo de Moraes Barros (1923)
  2. Fragmentos sobre os fragmentos, de Pedro de Queiroz (1918)
  3. Literatura do Norte, de Herman Lima (1926)
  4. A imprensa do Ceará dos seus primeiros dias aos atuais, de Eusébio de Sousa (1933)
  5. Dolentes, de Lívio Barreto (1897)
  6. Ondulações da poesia nova, de Newton Belleza (1937)
  7. D. Pedro II, de Antonio Theodorico da Costa (1913)
  8. Diccionario topographico, de Thomaz Pompeo (1861)
  9. O cearense na metrópole brasileira, de Jocelyn Luiz dos Santos (1923)
  10. O zebu, de M. Paulino Cavalcanti  (1944)
  11. Cantigas de trovadores medievais em portugues moderno, de Cleonice Berardinelli (1953)
  12. História do algodão, de D’Almeida Guerra Filho (19–?)
  13. Trovas populares brasileiras, de Afranio Peixoto (1919)
  14. Lavoura Caiçara, de Carlos Borges Schmidt (1958)
  15. Contribuição para o diccionario da flora do nordeste brasileiro, de Jose Luis de Castro (1937)
  16. Água corrente, de Olegario Marianno (1917)

A lista conta com uma obra a mais, para caso alguma restauração acabe antes do fim do curso.

restauração de livros

O Curso de Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais, segmento papel, é ofertado em uma parceria entre a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho e a Biblioteca Pública Estadual do Ceará – Foto: Paulo Marcelo Freitas/EAOTPS

Experiências com as obras

No caso de “Impressões do Nordeste Brasileiro”, escrito por Paulo de Moraes Barros, a aluna Marina Sales de Almeida detectou que o livro “sofreu bastante com a umidade”, formando mofo e bolor. É exatamente esse o problema que será tratado para aumentar a vida útil do livro, explica a aluna.

“De início, fizemos a ficha de diagnóstico e depois o desmonte do livro, tiramos as costuras e desfizemos os cadernos. Também fizemos a higienização com bicarbonato de sódio, que é uma técnica justamente para essa questão da umidade. Depois a gente fez alguns testes — de solubilidade, de pH — para saber se os carimbos não iriam sofrer com as etapas posteriores, que pode ser o banho ou a pulverização de alguma solução”, explica.

Formada em História e Biblioteconomia, Marina trabalha no setor de obras raras da Biblioteca Estadual e participa de diversos cursos que a ajudam a unir prática e teoria, como esse de conservação e restauração. Eles também ajudam a identificar formas de resolver problemas e propor melhorias no dia a dia de trabalho.

Terminei História e depois fui para a Biblioteconomia. Consigo ver, nessas duas áreas, uma motivação para trabalhar com esse tipo de suporte, que é o livro raro. (…) Claro que o livro não é um suporte que vai ser infinito, não vai durar por todo o sempre. Mas, com essas técnicas, você consegue fazer com que a informação que está nele perpetue por um período maior e que venham outras técnicas, como a digitalização, para também preservar tanto o suporte quanto a informação.
Marina Sales de Almeida
Aluna do Curso de Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais — segmento papel

Já para Natasha Sinali, de 26 anos, essa é a primeira experiência com obras raras e com conservação e restauração. Formada em Design – Moda na Universidade Federal do Ceará (UFC), ela pretende continuar os estudos na área acadêmica e o curso da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho chamou sua atenção pela possibilidade de explorar novos temas para futuras pesquisas.

“Tenho gostado (do curso). Tem uma parte teórica muito interessante, que eu gosto muito, sobre História e Antropologia, que me interessa muito, e tem vários processos manuais e químicos. (…) Gosto muito de trabalhos manuais. Tem muito a ver com a moda também, nesse sentido de você construir algo ou reconstituir”, conta.

Durante a formação, ela está responsável pelo exemplar de “História do algodão”, de D’Almeida Guerra Filho, que chegou às mãos dela com páginas quebradiças e com a encadernação desfeita. “Preciso lavar no banho alcalino e depois fazer esse processo (de restauro) com papel japonês, para colocar ele de volta no lugar assim e deixar o papel mais firme, mais forte, para ele poder durar mais tempo”, diz Natasha.

Preservar a memória

O “Curso de Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais – segmento papel”, é ofertado pela Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, em parceria com a Biblioteca Pública Estadual do Ceará. O objetivo é fornecer técnicas de conservação e restauração de documentos e publicações em papel.

O pedagogo e restaurador Luiz Evi Braga destaca a importância dessa ação para perpetuar a informação contida neste acervo. “Se os livros não passam por esse processo da conservação e da restauração, a informação é perdida, então a nossa história é perdida. E se nós não cuidarmos da história, nós estamos perdendo nossa origem, nosso ponto de início”, afirma.

Para ele, Fortaleza tem acervos diversos, mas falta oportunidade para esses profissionais. “Uma coisa que eu observo que ainda precisa ser melhorado é ofertar esse tipo de oportunidade para cuidar do nosso patrimônio”, diz o professor.

Suzete Nunes, superintendente da Biblioteca Pública Estadual do Ceará, destaca a importância da parceria entre a Bece e a Escola de Artes e Ofícios — dois equipamentos vinculados à Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) — para a preservação do próprio acervo da instituição, a partir da formação promovida pelos cursos.

“Vamos ter, como resultado, livros raros sendo tratados nesse processo de conservação e de restauração. Para nós, é muito importante o fortalecimento da política de formação e, como somos um lugar de memória, temos a oportunidade, na prática, de sermos beneficiados por ela”, afirma a superintendente.

O setor de obras raras da Bece foi criado em 1975 e tem um dos acervos mais importantes do Brasil, com livros em português, latim clássico, francês e inglês. “Ele foi criado a partir da aquisição de (exemplares das) bibliotecas de cearenses ilustres, como Barão de Studart. Já tem mais de 10 mil volumes, é o quinto do acervo raro do País. Temos as coleções das leis do Ceará, obras raras internacionais, do Ceará, do Brasil. É um acervo rico”, afirma a diretora Enide Vidal.

Essa área normalmente é visitada por pesquisadores, mas existem iniciativas para apresentar esse acervo ao público. É o caso do programa Galeria Folheada, que realiza exposições temáticas que destacam livros, documentos e outros materiais do acervo da Bece. “As obras raras têm todo um cuidado e ficam realmente em uma área isolada, e a consulta é orientada, mas fazemos com que o programa consiga dar visibilidade a esses livros”, explica Suzete Nunes.

A superintendente explica que o tema da Galeria Folheada atual é sobre livros importantes produzidos por mulheres ou que têm personagens femininas. “Atravessamos a Bece toda com esse acervo, e as obras raras também têm o seu recorte. Por exemplo, a primeira edição do livro ‘A Rainha do Ignoto’, de Emília Freitas, está exposta para o público”, complementa.

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